sexta-feira, 9 de março de 2012

Receita de Mulher



As muito feias que me perdoem 
Mas beleza é fundamental. 
É preciso que haja qualquer coisa de flor em tudo isso 
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture 
Em tudo isso (ou então Que a mulher se socialize elegantemente em azul, 
como na República Popular Chinesa). 
Não há meio-termo possível. É preciso 
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito 
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto 
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. 
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche 
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso 
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas 
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços 
Alguma coisa além da carne: que se os toque 
Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos 
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro 
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e 
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem 
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então 
Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca 
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência. 
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos 
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas 
No enlaçar de uma cintura semovente. 
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras 
É como um rio sem pontes. Indispensável. 
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida 
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios 
Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca 
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas. 
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral 
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! 
Os menbros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas 
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem 
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário. 
É aconselhavel na axila uma doce relva com aroma próprio 
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!). 
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos 
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão 
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre 
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos 
Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face 
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior 
A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras 
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferencia grandes 
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e 
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão 
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta 
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. 
Ah, que a mulher de sempre a impressão de que se fechar os olhos 
Ao abri-los ela não estará mais presente 
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá 
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber 
O fel da dúvida. Oh, sobretudo 
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo 
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade 
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma 
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre 
O impossível perfume; e destile sempre 
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto 
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina 
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição 
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação imunerável.


Vinicius de Moraes

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